sexta-feira, 30 de setembro de 2022

SENTENÇA. PRECATÓRIO COMPLEMENTAÇÃO DO FUNDEF. RATEIO DE 60% AOS PROFESSORES. PROCEDÊNCIA.

 



Proc. 0802404-86.2021.8.10.0038

Requerente: SINDICATO DOS TRABALHADORES EM ESTABELECIMENTOS DE ENSINO EM JOAO LISBOA MA

Requerido: MUNICIPIO DE JOAO LISBOA

Ação: [FUNDEF/Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério]





SENTENÇA



Trata-se de ação civil pública proposta pelo SINDICATO DOS TRABALHADORES EM ESTABELECIMENTOS DE ENSINO EM JOÃO LISBOA (MA) – SINTEEJOL, em desfavor do MUNICÍPIO DE João Lisboa/MA, a fim de que haja: a) o bloqueio de 60% (sessenta por cento) do montante recebido através do referido precatório n.º 0227635-91.2019.4.01.919, para preservação da devida remuneração excepcional dos profissionais de educação desta municipalidade, conforme artigo 60 do ADCT e Leis nº. 9.424/1996 e nº. 11.494/2007.



Na inicial, o autor procurou evidenciar a necessidade de concessão da tutela de urgência com a finalidade de impedir que o Município de João Lisboa utilize de maneira inadequada e em desacordo com a legislação vigente os recursos oriundos da sentença em benefício do Município de João Lisboa, cujo precatório foi emitido. Ressaltou a necessidade do Município respeitar a destinação legal dos recursos para a educação, reservando 60% dos valores depositados para os profissionais da educação.

Na inicial, o requerente sinalizou que, após ação de cobrança na Justiça Federal, o município e União fizeram um acordo que foi homologado judicialmente no valor de R$ 8.817.198,49 (oito milhões,oitocentos e dezessete mil, cento e noventa e oito reais e quarenta e nove centavos). Com a homologação do referido acordo, expediu-se o Precatório n.º 0201557-94.2018.4.01.9198, que, já tendo sido pago, atualmente possuiria um saldo restante de R$ 5.781.731,79 (cinco milhões, setecentos e oitenta e um mil e setenta e nove centavos).(id. 56535799)



Afirma que esse montante pode estar sendo utilizado em desacordo com o comando legal, podendo vir a causar prejuízos irreparáveis ou de difícil reparação à Municipalidade, à educação e aos professores.



Em sede de tutela de urgência, pleiteou inaudita altera partem o bloqueio dos valores correspondentes a 60% do precatório nº. 0201557-94.2018.4.01.9198 até a decisão final de mérito.



Foi indeferida a gratuidade requerida e deferido o parcelamento do recolhimento das custas.



A liminar foi deferida parcialmente para “para determinar que o bloqueio imediato, via ofício dirigido ao gerente local do Banco do Brasil, do valor equivalente a 60% (sessenta por cento) do valor existente na conta da municipalidade agencia nº 2787-1, CC 31672-5 oriunda do precatório º 0201557-94.2018.4.01.9198 até ulterior deliberação.” e foi determinada a citação do município.



O Banco do Brasil informou o bloqueio do valor de R$ 3.557.892,38 conforme determinação judicial.

O sindicato informou que o número correto do precatório é 0227-91.2019.4.01.919 e não 0201557-94.2018.4.01.9198 e requereu a reconsideração para bloqueio integral do valor depositado no Banco do Brasil.

A decisão foi mantida e determinado que se aguardasse a resposta do réu.

O Ministério Público afirmou interesse no feito.

O Município de João Lisboa apresentou contestação, oportunidade em que alegou em preliminar a incompetência da Justiça Estadual, pois os recursos seriam integralmente federais; carência de ação em face da existência de decisão cautelar do TCU determinando o sobrestamento do feito até julgamento do mérito; no mérito, afirma que a destinação da referida verba é controvertida diante das diversas interpretações dadas ao art. 22 da Lei nº 11.494/2007; que o TCU tem acórdão apontando dentre outras diretrizes que os recursos oriundos da subvinculação do FUNDEF do art. 7º da Lei nº 9424/1996 e art. 22 da LEI nº 11494/2007 somente incide sobre recursos ordinários anuais e não a montantes extraordinários como seriam os precatórios; que em sentido semelhante teria se posicionado o FNDE por Nota Técnica 12 e 19/2018; que o município dialogou com a classe em 2019 e mostrou o cenário de impedimento da distribuição dos valores do precatório àquela época; que o cenário mudou com o advento da LEI nº 14057/2000 que no seu art. 7º incluiu os precatório do FUNDEB no rateio dos 60% da subvinculação do art. 7º da LEI nº 9494/96, mediante abono para profissionais do magistério ativo, inativos e pensionistas; que diante da nova lei, o TCU proferiu nova cautelar determinando que os entes públicos se abstenham de proceder com rateios dos precatórios entre servidores; que diante dessa decisão, o município de João Lisboa se absteve do rateio, sendo desnecessária a presente ação, senão para onerar os cofres públicos com pagamentos de honorários; que a EC 114/2021 reforçou o rateio dos 60% aos profissionais do magistério mediante abono; que o município entende que a forma de rateio diante da novel legislação se aplica a situações presentes e futuras (ou seja, a acordos firmados após a vigência da lei 14057/2020 em 11.09.2020), mas não retroage, devendo a ação ser julgada improcedente; que não estão presentes os requisitos para tutela antecipada; finaliza requerendo o acolhimento das preliminares e a improcedência da ação.



A parte autora apresentou réplica, oportunidade em reafirmou a competência da 1ª vara de João Lisboa e a inexistência de interesse do ente federal; que a ação é necessária já que o município se recusa a efetuar os repasses do 60% do precatório para os professores, baseado em acordão do TCU e que só uma ação judicial poderia permitir a municipalidade realizar a movimentação e repasses, sob pena de responsabilização; no mérito, reafirma a legalidade do rateio corroborada pela LEI nº 14057 e EC 114/2021 e pela ADPF 528/2020; finaliza requerendo o julgamento antecipado da lide.



As partes foram intimadas para especificação de provas.



O autor requereu a juntada da LEI nº 14325/2022 e informou não possuir mais provas a produzir.



Com vistas, o MPE apresentou parecer minucioso onde se manifestou pela competência da Justiça Estadual e legitimidade do sindicato para a presente ação; no mérito, afirma que o entendimento da jurisprudência era de não subvinculação dos precatórios do FUNDEF aos 60% do art. 22 da LEI nº 11494/2007, inclusive teria sido a posição do STF no julgamento da ADPF 528; que porém a legislação que se seguiu com destaque para a Lei 14235 de 12.04.2022 que alterou a Lei nº 14113 em seu art. 47A fez opção diversa e determinou o rateio dos valores dos precatórios para os profissionais da educação ativos durante os respectivos períodos de repasse a menor entre os anos de 97-2006. Finalizou opinando pela procedência parcial da demanda para destinação de 60% do saldo em conta oriundo do precatório para pagamento de profissionais do magistério na forma da LEI nº 14235/2022 e Lei Municipal nº 11/2022.



Vieram os autos conclusos.



É o relatório. Decido.



FUNDAMENTAÇÃO



DO JULGAMENTO ANTECIPADO DO MÉRITO


In casu, a matéria comporta julgamento antecipado do mérito. A norma prescrita no art. 355, inc. I, do NCPC permite ao juiz julgar antecipadamente o mérito.



Com efeito, o ordenamento jurídico faculta às partes a produção de todas as provas admitidas em direito. No entanto, a produção probatória não é livre, havendo limitações de ordem material e processual, como dispõem o art. 369 do CPC e o art. 5º da CF.

Além disso, as provas destinam-se a formar o convencimento do magistrado para que, diante do caso concreto, preste a devida tutela jurisdicional. Assim, como as provas são destinadas ao juiz, cabe a ele deferir ou não aquelas que entender inúteis ou desnecessárias, pois, nos termos do art. 370 do Código de Processo Civil, "caberá ao juiz, de ofício ou a requerimento da parte, determinar as provas necessárias ao julgamento do mérito".


Desse modo, a precipitação do julgamento do mérito deve ocorrer toda vez que o juiz se encontre devidamente instruído acerca dos fatos submetidos à sua apreciação, podendo aplicar o direito ao caso concreto, independentemente da produção de qualquer outra prova, além da documental já constante dos autos, que é o caso da presente.

Por oportuno, enalteço que fora respeitado o contraditório dinâmico insculpido no novo CPC.



PRELIMINARES



INCOMPETÊNCIA MATERIAL DA JUSTIÇA ESTADUAL



A princípio, o Município de João Lisboa, em sede preliminar, argui a incompetência absoluta deste juízo para processo e julgamento do presente feito, vez que entende haver interesse da União no caso concreto, ensejando a remessa dos autos à Justiça Federal.

Em relação à preliminar de incompetência deste Juízo para o julgamento do feito, argumentando que há interesse da União, por se tratar de recursos indenizatórios de natureza federal, requerendo o declínio dos autos para Justiça Federal, entendo que não merece prosperar.

Isso porque, a União e nenhum de seus entes administrativos possuem interesse no feito, uma vez que a expedição do precatório para a municipalidade requerida se traduz na incorporação do direito ao patrimônio municipal, restando a competência para este juízo.

Nesse sentido:

CONFLITO DE COMPETÊNCIA Nº 152.473 - CE (2017/0121850-
6) SUSCITANTE: JUÍZO DE DIREITO DA VARA UNICA DE PIQUET CARNEIRO - CE SUSCITADO: JUÍZO FEDERAL DA 6A VARA DA SEÇÃO JUDICIÁRIA DO ESTADO DO CEARÁ. (...). Em casos idênticos o STJ vem se manifestando acerca da competência estadual, no sentido, confira-se: PROCESSUAL CIVIL. CONFLITO DE COMPETÊNCIA. JUÍZOS FEDERAL E ESTADUAL. PRECATÓRIO JUDICIAL EXPEDIDO NO ÂMBITO DA JUSTIÇA FEDERAL. APLICAÇÃO DOS VALORES. UNIÃO. INTERESSE. INEXISTÊNCIA. 1. Autos originários que contemplam demanda entre sindicato representante de profissionais da área de educação e município, pertinente à aplicação dos valores relativos a precatório, expedido no âmbito federal, referente à complementação do FUNDEF reconhecida em sentença judicial. 2. Embora o direito do município demandado à complementação dos valores relativos ao FUNDEF tenha sido reconhecido no âmbito da Justiça Federal, inexiste nos autos pedido formulado em desfavor da União, não havendo, no polo passivo da demanda, quaisquer dos entes elencados no art. 109 da CF/1988, sendo certo que a causa de pedir constante do feito originário não tem o condão de acarretar necessariamente o interesse jurídico do ente federal. 3. Nos termos da Súmula 150 do STJ, "compete à Justiça Federal decidir sobre a existência de interesse jurídico que justifique a presença, no processo, da União, suas autarquias ou empresas públicas". 4. Conflito conhecido, com a declaração da competência do Juízo Estadual, suscitante. (CC 149.952/CE, Rel. Ministro GURGEL DE FARIA, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 22/03/2017, DJe 26/04/2017.


Assim, não merece prosperar a alegação da parte requerida. A uma porquanto não há lesão direta a bens da União. Uma vez transitada em julgado a sentença que a condenou ao pagamento de complementação das verbas destinadas ao Municípios, via antigo FUNDEF, atualmente, FUNDEB, a ela cabe proceder com o pagamento destes valores que, inclusive, tem natureza indenizatória.



CARÊNCIA DE AÇÃO POR FALTA DE INTERESSE



Em sua resposta, o município de João Lisboa suscita a carência de ação do autor por falta de interesse processual, pois, o pleito já encontra-se em discussão no âmbito do TCU que, inclusive, proferiu decisão administrativa cautelar no âmbito do acórdão TCU nº 1039/2021, em 05.05.2021, determinando que os entes federativos, incluindo o réu, se abstivessem de utilizar os recursos oriundos do precatório de complementação do FUNDEF debatido na inicial até o julgamento do mérito daquele procedimento no âmbito do TCU, inclusive sob pena de responsabilização do gestor.

Sem razão.

Com efeito, é evidente o interesse processual do autor já que encontra resistência na sua pretensão junto à municipalidade que ao cumprir com a ordem administrativa emanada do TCU, viola, em tese, direito dos profissionais da educação do município de João Lisboa de apossamento dos 60% do remanescente do precatório oriundo da complementação do FUNDEF.

Portanto, é evidente a necessidade da presente ação com vistas a, em tese, vencer a resistência da municipalidade, ainda que se trate de uma resistência involuntária já que oriunda de medida de coerção indireta consistente em ameaça de responsabilização do gestor, conforme consta no corpo do referido Acordão do TCU. Afasto a preliminar.



MÉRITO



Os valores pagos pela União, a título de complementação do FUNDEB, ainda que pagos mediante precatório, não perdem a condição de verbas destinadas à educação e devem ser aplicadas nos termos da Constituição Federal e da legislação em vigor, notadamente a Lei nº. 11.494/2007, a qual, em seu artigo 22, autoriza o pagamento de 60% (sessenta por cento) da verba do FUNDEB direto aos profissionais do magistério.



A matéria é de índole Constitucional, tendo seu tratamento inicial com a EC 14/96, que alterou o Art. 60 do ADCT da Constituição Federal e previu:

Art. 60. Nos dez primeiros anos da promulgação desta emenda, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios destinarão não menos de sessenta por cento dos recursos a que se refere o caput do art. 212 da Constituição Federal, a manutenção e ao desenvolvimento do ensino fundamental, com o objetivo de assegurar a universalização de seu atendimento e a remuneração condigna do magistério.
§ 1º A distribuição de responsabilidades e recursos entre os estados e seus municípios a ser concretizada com parte dos recursos definidos neste artigo, na forma do disposto no art. 211 da Constituição Federal, e assegurada mediante a criação, no âmbito de cada Estado e do Distrito Federal, de um fundo de manutenção e desenvolvimento do ensino fundamental e de valorização do magistério, de natureza contábil.
(...)
§ 3º A União complementará os recursos dos Fundos a que se refere o § 1º, sempre que, em cada Estado e no Distrito Federal, seu valor por aluno não alcançar o mínimo definido nacionalmente. (...)
§ 7º A lei disporá sobre a organização dos Fundos, a distribuição proporcional de seus recursos, sua fiscalização e controle, bem como sobre a forma de cálculo do valor mínimo nacional por aluno.

A fim de regulamentar este art. 60 do ADCT, foi editada a Lei nº 9.424/96 (atualmente revogada), criando o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério - FUNDEF.

Nas palavras de CAVALCANTE, Márcio André Lopes (CAVALCANTE, Márcio André Lopes. FUNDEF: União deverá indenizar Estados prejudicados com o cálculo incorreto do VMNA. Buscador: Dizer o Direito, Manaus), verbis:

O FUNDEF era um fundo financeiro de natureza contábil e sem personalidade jurídica, gerido pela União, composto por 15% do ICMS e do IPI-exportação arrecadados, assim como o mesmo percentual para fundos de participação obrigatórios (FPE e FPM) e ressarcimento da União pela Desoneração de Exportações decorrentes do Fundo Kandir.
Com este fundo, cada Estado e cada Município recebia o equivalente ao número de alunos matriculados na sua rede pública do Ensino Fundamental. Além disso, havia um valor mínimo nacional por aluno/ano.
Não atingido o piso com a aplicação apenas dos recursos estaduais e municipais, a lei determinava o aporte de dinheiro da União para efetuar a complementação.

Assim, se, mesmo sendo aplicados esses percentuais de recursos no Fundo, não se conseguisse alcançar um valor mínimo por aluno, então, neste caso, a União deveria complementar os recursos do FUNDEF, ou seja, repassar mais dinheiro para a educação dos Estados e Municípios. Isso estava previsto no § 3º do art. 60 do ADCT e também no art. 6º da Lei nº 9.424/96:

Art. 6º A União complementará os recursos do Fundo, a que se refere o art. 1º sempre que, no âmbito de cada Estado e do Distrito Federal, seu valor por aluno não alcançar o mínimo definido nacionalmente.
§ 1º O valor mínimo anual por aluno, ressalvado o disposto no § 4º, será fixado por ato do Presidente da República e nunca será inferior à razão entre a previsão da receita total para o Fundo e a matrícula total do ensino fundamental no ano anterior, acrescida do total estimado de novas matrículas, observado o disposto no art. 2º, § 1º, incisos I e I.
(...)

O Decreto nº 2.264/97 (atualmente revogado) foi publicado pelo Presidente da República com o objetivo de definir esse "Valor Mínimo Nacional por Aluno" (VMNA), nos termos do § 1º do art. 6º da Lei nº 9.424/96, utilizando para tanto o número de alunos em cada Estado, isoladamente.

Ocorre que o Superior Tribunal de Justiça, ao apreciar os critérios definidos no Decreto 2.264/97, em sede de recurso repetitivo, fixou tese de que:

Para fins de complementação pela União ao Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental - FUNDEF (art. 60 do ADCT, redação da EC 14/96), o "valor mínimo anual por aluno" (VMAA), de que trata o art. 6º, § 1º da Lei 9.424/96, deve ser calculado levando em conta a média nacional. STJ. 1a Seção. REsp 1101015/BA, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, julgado em 26/05/2010.

Neste caso, o Decreto extravasou a delegação legal para determinar critério incompatível com a finalidade do fundo criado. Reconhecida tal distorção, novas ações foram manejadas em face da União, agora para o reconhecimento do dever de pagar a suplementação relativa à complementação paga a menor por ela no período entre 1998 a 2007.

Neste sentido, o Supremo Tribunal Federal:

AÇÕES CÍVEIS ORIGINÁRIAS. ESTADO DA BAHIA. DIREITO F I N A N C E I R O . F U N D O D E M A N U T E N Ç Ã O E DESENVOLVIMENTO DO ENSINO FUNDAMENTAL E DE VALORIZAÇÃO DO MAGISTÉRIO - FUNDEF. EMENDA CONSTITUCIONAL 14/1996. COMPLEMENTAÇÃO DA UNIÃO. FUNÇÃO SUPLETIVA. VALOR MÍNIMO NACIONAL POR ALUNO. FIXAÇÃO. LEI 9.424/1996. DECRETO 2.264/1997. FORMA DE PAGAMENTO. OBRIGAÇÃO DE PAGAR. SISTEMÁTICA DOS
P R E C A T Ó R I O S . V I N C U L A Ç Ã O À F I N A L I D A D E CONSTITUCIONAL DE ENSINO. DANO MORAL COLETIVO. 1. O valor da complementação da União ao FUNDEF deve ser calculado com base no valor mínimo nacional por aluno extraído da média nacional. RE-RG 636.978, de relatoria do Ministro Cezar Peluso, Tribunal Pleno do STF. REsp 1.101.015, de relatoria do Ministro Teori Zavascki, 1a Seção do STJ. Acórdão do Pleno TCU 871/2002. 2. A complementação ao FUNDEF realizada a partir do valor mínimo anual por aluno fixada em desacordo com a média nacional impõe à União o dever de suplementação de recursos, mantida a vinculação constitucional a ações de desenvolvimento e manutenção do ensino. 3. É ilegal o Decreto 2.264/1997 na medida em que extravasou da delegação legal oriunda do § 1º do art. 6º da Lei 9.424/1996 e das margens de discricionariedade conferidas à Presidência da República para fixar, em termos nacionais, o Valor Mínimo Nacional por Aluno. 4. Há um único método de cálculo do Valor Mínimo Nacional por Aluno nunca inferior à razão entre a previsão da receita total para o fundo e a matrícula total do ensino fundamental no ano anterior, acrescida do total estimado de novas matrículas, tudo em âmbito nacional. 5. A adoção de parâmetros nacionais não descaracteriza o caráter regional dos fundos de natureza contábil, gerenciados pelos Estados federados, com vinculação constitucional a ações de desenvolvimento e manutenção do ensino fundamental. Art. 60 do ADCT. 6. Eventual frustração de repasse de verbas é unicamente interesse público secundário da Fazenda Pública, inconfundível, pois, com suposta ofensa aos direitos de personalidade da população de determinado ente federativo para efeitos de responsabilização de danos morais coletivos. 7. Deu-se a perda superveniente do objeto da demanda com o advento da EC 53/2006, instituidora do FUNDEB, porquanto se torna inviável a imposição de obrigações de fato positivo e negativo no que diz respeito ao FUNDEF. 8. O adimplemento das condenações pecuniárias por parte da União e respectiva disponibilidade financeira aos Autores vinculam-se à finalidade constitucional de promoção do direito à educação, única possibilidade de dispêndio dessas verbas públicas. 9. Ação cível originária parcialmente conhecida e, na parte conhecida, a que se dá parcial procedência. (ACO 648, Relator (a): Min. MARCO AURÉLIO, Relator (a) p/ Acórdão: Min. EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 06/09/2017, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-045 DIVULG 08-03-2018 PUBLIC 09-03-2018).

De imediato é possível destacar que o pretório excelso deixou bem claro a vinculação constitucional das verbas financeiras decorrentes do reconhecimento da obrigação da União em suplementar os valores a título de complementação do valor mínimo anual por aluno.



Resolvida a questão da origem da complementação, foi apurado que ao município de João Lisboa caberia o recebimento do valor de R$ 8.817.198,49 o qual fora repassado mediante precatório para a municipalidade em 03.07.2020, conforme id. 56535801.



Apurou-se, ainda, que quando do ajuizamento da presente ação em 18.11.2021, havia em conta bancária remanescente daquele valor a importância de R$ 5.781.731,79, conforme id. 56535799.



Diante da esquadra descrita, surge um cenário de insegurança jurídica:

1) de um lado por conta da tradicional jurisprudência do Tribunais, incluindo STF no julgamento da ADPF 528/2020 e TCU que entendiam que os valores oriundos de precatórios de complementação do FUNDEF não estariam subvinculados ao disposto no art. 22 da lei nº 11494/2007 (Lei do FUNDEB), já que esta lei falava em recursos ordinários anuais e, os tribunais entediam que os precatórios teriam natureza extraordinária:



DIREITO À EDUCAÇÃO. COMPLEMENTAÇÃO DOS RECURSOS DO FUNDEF/FUNDEB. COMO VERBAS DE NATUREZA EXTRAORDINÁRIA. CONSTITUCIONALIDADE DO AFASTAMENTO DA SUBVINCULAÇÃO QUE DETERMINA A APLICAÇÃO DE 60% DOS RECURSOS ANUAIS TOTAIS DOS FUNDOS AO PAGAMENTO DA REMUNERAÇÃO DOS PROFISSIONAIS DO MAGISTÉRIO DA EDUCAÇÃO BÁSICA. IMPOSSIBILIDADE DO PAGAMENTO DE HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS CONTRATUAIS COM RECURSOS DO FUNDEF/FUNDEB. CARACTERIZAÇÃO DE DESVIO DE VERBAS CONSTITUCIONALMENTE VINCULADAS À EDUCAÇÃO. PRECEDENTES. CONSTITUCIONALIDADE DO ACÓRDÃO 1.824/2017 DO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. INCIDÊNCIA DA EC 114/2021. IMPROCEDÊNCIA. 1. A orientação do TCU que afasta a incidência da regra do art. 22 da Lei 11.494/2007 aos recursos de complementação do FUNDEB pagos por meio de precatórios encontra-se em conformidade com os preceitos constitucionais que visam a resguardar o direito à educação e a valorização dos profissionais da educação básica. 2. O caráter extraordinário da complementação dessa verba justifica o afastamento da subvinculação, pois a aplicação do art. 60, XII, do ADCT, c/c art. 22 da Lei 11.494/2007, implicaria em pontual e insustentável aumento salarial dos professores do ensino básico, que, em razão da regra de irredutibilidade salarial, teria como efeito pressionar o orçamento público municipal nos períodos subsequentes – sem o respectivo aporte de novas receitas derivadas de inexistentes precatórios –, acarretando o investimento em salários além do patamar previsto constitucionalmente, em prejuízo de outras ações de ensino a serem financiadas com os mesmos recursos. 3. É inconstitucional o pagamento de honorários advocatícios contratuais com recursos alocados no FUNDEF/FUNDEB, que devem ser utilizados exclusivamente em ações de desenvolvimento e manutenção do ensino. Precedentes. 4. A vinculação constitucional em questão não se aplica aos encargos moratórios que podem servir ao pagamento de honorários advocatícios contratuais devidamente ajustados, pois conforme decidido por essa CORTE, “os juros de mora legais têm natureza jurídica autônoma em relação à natureza jurídica da verba em atraso” (RE 855091-RG, Rel. Min. DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 15/3/2021, DJe de 8/4/2021). 5. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental julgada IMPROCEDENTE.

(STF - ADPF: 528 DF 0073840-27.2018.1.00.0000, Relator: ALEXANDRE DE MORAES, Data de Julgamento: 21/03/2022, Tribunal Pleno, Data de Publicação: 22/04/2022)



2) De outro lado, o advento de diversas leis ordinárias (lei nº 14057/2020, Lei nº 14325/2022 que alterou o art. 47A da Lei nº 14113/2020) e até da EC 114/2021 que apontam solução em sentido diametralmente oposto, incluindo, expressamente as verbas oriundas de precatórios de complementação do FUNDEF entre as verbas que seriam incluídas dentro da vinculação dos 60% previstos no art. 22 da LEI nº 11494/2007:



LEI Nº 14057/2020:

Art. 7º Os acordos a que se refere esta Lei contemplam também os precatórios oriundos de demanda judicial que tenha tido como objeto a cobrança de repasses referentes à complementação da União aos Estados e aos Municípios por conta do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef), a que se referia a Lei nº 9.424, de 24 de dezembro de 1996.

Parágrafo único. (VETADO).   (Promulgação partes vetadas)

Parágrafo único. Os repasses de que trata o caput deste artigo deverão obedecer à destinação originária, inclusive para fins de garantir pelo menos 60% (sessenta por cento) do seu montante para os profissionais do magistério ativos, inativos e pensionistas do ente público credor, na forma de abono, sem que haja incorporação à remuneração dos referidos servidores.


LEI Nº 14325/2022:



Art. 1º  A Lei nº 14.113, de 25 de dezembro de 2020, passa a vigorar acrescida do seguinte art. 47-A:

Art. 47-A. Serão utilizados na mesma finalidade e de acordo com os mesmos critérios e condições estabelecidos para utilização do valor principal dos Fundos os recursos extraordinários recebidos pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos Municípios em decorrência de decisões judiciais relativas ao cálculo do valor anual por aluno para a distribuição dos recursos:
I - dos fundos e da complementação da União ao Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef), previstos na Lei nº 9.424, de 24 de dezembro de 1996;
II - dos fundos e da complementação da União ao Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) 2007-2020, previstos na Lei nº 11.494, de 20 de junho de 2007;
III - dos fundos e das complementações da União, nas modalidades VAAF e VAAT, ao Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) permanente, previstos nesta Lei.
§ 1º Terão direito ao rateio de que trata o caput deste artigo:
I - os profissionais do magistério da educação básica que estavam em cargo, emprego ou função, integrantes da estrutura, quadro ou tabela de servidores do Estado, do Distrito Federal ou do Município, com vínculo estatutário, celetista ou temporário, desde que em efetivo exercício das funções na rede pública durante o período em que ocorreram os repasses a menor do Fundef 1997-2006 ou do Fundeb 2007-2020 a que se referem os incisos I e II do caput deste artigo;
II - os profissionais da educação básica que estavam em cargo, emprego ou função, integrantes da estrutura, quadro ou tabela de servidores do Estado, do Distrito Federal ou do Município, com vínculos estatutário, celetista ou temporário, desde que em efetivo exercício das funções na rede pública durante o período em que ocorreram os repasses a menor do Fundeb permanente a que se refere o inciso III do caput deste artigo;
III - os aposentados que comprovarem efetivo exercício nas redes públicas escolares, nos períodos dispostos nos incisos I e II do caput deste artigo, ainda que não tenham mais vínculo direto com a administração pública que os remunerava, e os herdeiros, em caso de falecimento dos profissionais alcançados por este artigo.
§ 2º O valor a ser pago a cada profissional:
I - é proporcional à jornada de trabalho e aos meses de efetivo exercício no magistério e na educação básica, no caso dos demais profissionais da educação básica previstos no inciso III do caput do art. 61 da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996;
II - tem caráter indenizatório e não se incorpora à remuneração dos servidores ativos ou aos proventos dos inativos que fizerem parte do rateio definido no § 1º deste artigo.”



EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 114/2021:



Art. 5º As receitas que os Estados e os Municípios receberem a título de pagamentos da União por força de ações judiciais que tenham por objeto a complementação de parcela desta no Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef) deverão ser aplicadas na manutenção e desenvolvimento do ensino fundamental público e na valorização de seu magistério, conforme destinação originária do Fundo.

Parágrafo único. Da aplicação de que trata o caput deste artigo, no mínimo 60% (sessenta por cento) deverão ser repassados aos profissionais do magistério, inclusive aposentados e pensionistas, na forma de abono, vedada a incorporação na remuneração, na aposentadoria ou na pensão.”



Portanto, é evidente que as interpretações dos Tribunais e TCU sucumbiram diante do novo quadro legislativo que se formou.



Assim, não há mais margem de discussão acerca da vinculação das verbas de complementação do FUNDEF como integrantes do montante que deva ser objeto de rateio entre os profissionais do magistério na forma preconizada pela Lei nº 14.325/2022.



A discussão que remanesce é se seria o município obrigado a entregar para rateio mediante abono aos profissionais do magistério os 60% da integralidade do valor do precatório recebido antes das alterações legislativas (R$ 8.817.198,49) ou se estaria obrigado a fazê-lo relativamente ao saldo remanescente na conta vinculada após o advento das legislações (R$ 5.781.731,79).



Nesse ponto, entendo correta a manifestação do MPE baseada na Nota Técnica nº 02/2022 – CTI FUNDEF/FUNDEB – 1º CCR/MPF.



Com efeito, tendo o precatório de complementação do FUNDEF sido recebido em 03.07.2020, quando vigia as interpretações do STF e TCU no sentido de que tais verbas não estariam vinculadas ao pagamento de profissionais do magistério já que não se tratava de verbas “ordinárias” anuais, caberia ao município dar destinação pública e utilização ao montante em favor da Educação Básica e Fundamental, não podendo, agora, ser punido com a condenação a devolução desses valores que foram utilizados em conformidade com a lei e jurisprudência vigentes à época.



O saldo que se encontra em conta, foi bloqueado judicialmente no percentual de 60% atingindo um montante de R$ 3.557.892,38. Tal valor deve ser objeto de rateio entre os profissionais do magistério do município de João Lisboa, obedecendo aos critérios de rateio entre os profissionais beneficiados, nas formas definidas na Lei Federal nº 14325/2022 e Lei Municipal nº 11/2022.



Os 40% remanescente do saldo em conta-corrente oriundos do referido precatório, ficam disponíveis para aplicação em favor da Educação de João Lisboa, na forma preconizada pela legislação do FUNDEB.



DISPOSITIVO



ANTE O EXPOSTO, acolho o parecer do Ministério Público para, JULGANDO PROCEDENTE a presente demanda, nos termos do art. 487, I do CPC, determinando que os recursos oriundos do PRECATÓRIO Nº 0227635-91.2019.4.01.9198, processo Originário nº 2036-87.2009.4.01.3701 sejam aplicados exclusivamente na manutenção e desenvolvimento da educação básica e na valorização dos profissionais da educação, destinando-se consequentemente 60% (sessenta por cento), ou seja, R$ 3.557.892,38 e seus acréscimos, para pagamento dos profissionais do magistério, não integrando as vantagens fixas e permanentes que recebiam/recebem, assim como a aplicação exclusiva dos 40% (quarenta por cento) restantes e seus acréscimos, na manutenção e desenvolvimento da educação.

AUTORIZO o Município de João Lisboa a proceder com o rateio na forma acima determinada, independente do julgamento do mérito da demanda no âmbito do TCU. (PROCESSO TC 012.379/2021-2).

Determino o desbloqueio da valor anteriormente tornado indisponível correspondente aos 60% do saldo remanescente da conta onde depositado o precatório.

Condeno o réu ao pagamento das custas e despesas processuais, bem como ao pagamento de honorários advocatícios no importe de 5% (cinco por cento) sobre o valor que será revestido ao autor, a teor do art. 85, § 3º, inciso III c/c § 4º, inciso III, do CPC.

Sentença sujeita à remessa necessária, nos termos os art. 496, I do CPC.

Publique-se. Registre-se. Intime-se.

Cientifique-se o representante do Ministério Público.



João Lisboa/MA, 30 de setembro de 2022.

Juiz Glender Malheiros Guimarães

Titular da 1ª Vara de João Lisboa