quarta-feira, 27 de abril de 2022

SENTENÇA CONDENATÓRIA. ESTUPRO E ESTUPRO DE VULNERÁVEL. CRIME CONTINUADO.

 

S E N T E N Ç A



I- RELATÓRIO



O Ministério Público Estadual, através de seu representante legal, no uso de suas atribuições legais e constitucionais, ofereceu denúncia em face de C J R M, qualificados às fls. 02, como incurso nas sanções do art. 217, § 1º c/c 226, II c/c art. 69 do Código Penal (sic) e art. 213, § 1º c/c 226, II c/c art. 69 do Código Penal, com arrimo nos fatos que seguem.



(...) o denunciado constrangeu à conjunção carnal, mediante ameaça, B S S, de apenas 14 (quatorze) anos de idade, da qual é tio-avô, fato ocorrido na casa da irmã dele e avó materna dela, onde ambos residiam, na Rua xxxxx, nesta cidade, conduta reiterada por ele no dia 11 de dezembro do mesmo ano, quando novamente usou de ameaça para constrangê-la a manter relações sexuais, desta vez na residência de uma irmã da vítima, no mesmo bairro Mutirão, periferia de João Lisboa.

As provas apuradas no inquérito policial autuado sob o n° 082/2020-DP/JL revelam que os abusos sexuais do denunciado contra a vítima ocorriam desde quando ela tinha apenas 11 anos de idade, em 2017, ano em que ele diversas vezes acariciou o corpo dela e lhe passou a mão nas partes íntimas, atos sempre precedidos por atração da criança ao quarto dele, a pretexto de presenteá-la com bombons e de mostrar-lhe vídeos de conteúdo sexual, que ele adjetivava como "engraçados".

Desde então, eram frequentes as ocasiões em que ele a beijava no rosto, chegando até a beijá-la no canto da boca, aproveitando-se dos momentos em que lhe dava doces e outros presentes, conduta que não adotava com outras crianças e adolescentes da família

(...) no ano seguinte, a pretexto de presenteá-la com um par de sapatos, a atraiu para o seu quarto e lhe disse que “no tempo em que eu te dava balinha tu era muito nova. Agora tu tá crescendo e virando mulher”, ao tempo em que apalpava o corpo dela, o que a fez correr, impedindo que as ações dele ganhassem maior relevo naquela ocasião, tendo ela também conseguido escapar da investida dele outra vez, no final daquele ano, quando, após tomar banho, ela saiu do banheiro e se deparou com o denunciado, que a esperava e tentou jogá-la sobre a cama.

(...) quando a vítima tentou sair do quarto em que o denunciado a esperava, ele interceptou sua passagem e a segurou pelo braço, passando a ameaçá-la de que, se não cedesse ao ato sexual, ele contaria para sua avó que ela havia se envolvido amorosamente com uma moça, com a qual tinha ido a uma festa às escondidas, fato que provocaria grande insatisfação na progenitora, além da completa desaprovação familiar, obrigando-a, desse modo, a submeter-se à conjunção carnal indesejada (...)

(...) a vítima decidiu filmar as ações do acusado com um smartphone e foi ao encontro dele na casa de sua irmã. Ali, após descobrir a intenção da vítima de filmá-lo, o denunciado passou a apalpar os seios dela a pretexto de ensiná-la "como realizar o autoexame de câncer de mama". Ela tentou desvencilhar-se, mas ele trancou a porta da casa com um cadeado e novamente a constrangeu à conjunção carnal.

A vítima, desde os primeiros atos de abuso, no ano 2017, passou a demonstrar instabilidade emocional e psicológica, tristeza extrema e episódios de choro frequentes, chegando mesmo a mutilar várias vezes o próprio corpo e a tentar contra a própria vida, mas se absteve de revelar as ações criminosas do denunciado aos familiares por medo dele e por temer não ser acreditada.

A violência só veio a lume porque, no dia seguinte à segunda relação sexual, a vítima narrou os fatos ao psicólogo que a atendia e este a estimulou a revelá-los à família dela, o que de fato ocorreu em uma reunião que ela solicitou para tal fim, e que resultou na fuga do denunciado desta cidade e na mudança da vítima com sua genitora para Goiânia. Só depois, quando a vítima voltou a residir em João Lisboa e novamente com amparo de um profissional de psicologia, os fatos foram levados ao conhecimento do Conselho Tutelar e, a partir deste, à Polícia Civil.

As condutas do denunciado praticadas contra a vítima nos anos 2017 e 2018 (atos libidinosos diversos da conjunção carnal), amoldam-se ao tipo penal descrito no art. 217, § 1º c/ 226, II c/ 69 do Código Penal, es que, além da violência presumida em razão de ser menor de quatorze anos de idade, ela não tinha condições de lhe oferecer resistência devido à autoridade e ascendência que ele exercia sobre ela como seu tio-avô. As condutas dele, de obrigá-la a ter, com ele, conjunção carnal e submeter-se à prática de outros atos libidinosos, duas vezes - em junho e dezembro de 2020 - quanto ela já tinha completado quatorze anos, amoldam-se ao tipo penal previsto no art. 213, § 1º c/c 226, II c/ 69 do Código Penal.

 

A denúncia foi recebida no dia 07.12.2021, id. 57720994, tendo sido determinada a citação do acusado.

A defesa prévia foi apresentada no id.58554486, com pedido de apresentação de testemunhas em outro momento, ainda alegou inépcia da denúncia com base no art. 41 do CPP. Requereu a absolvição sumária com o fundamento de insuficiência e fragilidade das provas.

O Ministério Público se manifestou no id. 58932687, pugnando pela manutenção da prisão preventiva.

O recebimento da denúncia foi mantido no id. 59142155, tendo sido determinada a designação de audiência de instrução e julgamento para oitiva das testemunhas e do réu.

No id. 61195272, a audiência foi realizada, oportunidade em que foram ouvidas seis testemunhas de acusação e uma de defesa. Foi designada audiência de continuação, realizada no id. 61291320, ocasião em que foram ouvidas quatro testemunhas de acusação e quatro de defesa. Em seguida, procedeu-se ao interrogatório do acusado.

Foi declarada encerrada a instrução e os autos remetidos às partes para apresentação de memoriais, tendo em vista a complexidade do fato.

O Ministério Público Estadual apresentou alegações escritas no id. 64139078, pugnando pela procedência da pretensão acusatória, com a conseqüente condenação do réu.

A defesa, por seu turno, em alegações finais sustenta a insuficiência de provas, divergências nos depoimentos, sustentando a negativa de autoria e a insuficiência de provas que autorizem uma condenação.

Vieram os autos conclusos.

É O RELATÓRIO. PASSO A DECIDIR.

II – FUNDAMENTAÇÃO.



II.1 QUANTO À IMPUTAÇÃO DOS CRIMES DO ART. 217-A, §1º C/C ART. 226, II C/C ART. 69 DO CÓDIGO PENAL BRASILEIRO

Ao réu  foi imputada a prática do crime previsto no art. 217-A, §1º c/c art. 226, II c/c art. 69 do Código Penal Brasileiro, introduzido no ordenamento pela Lei nº 12015/09 de 07.08.2009, in verbis:

Estupro de vulnerável

Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos:

Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.

§ 1o Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.

Segundo a denúncia, tal teria ocorrido porque entre os anos de 2017-2018, quando a vítima tinha apenas 11 anos de idade, o acusado teria constrangido a vítima a praticar com ela ato libidinoso diverso da conjunção carnal consistente em diversas vezes acariciar o corpo dela e lhe passar a mão nas partes íntimas “atos sempre precedidos por atração da criança ao quarto dele, a pretexto de presenteá-la com bombons e de mostrar-lhe vídeos de conteúdo sexual”.

Legalmente e doutrinariamente, infere-se que pela teoria finalista da ação, crime é toda ação ou omissão típica, ilícita e culpável.

Nestas condições, e considerando os elementos de cognição existente nos autos, passo a apreciar a conduta imputada ao aludido réu.

TIPICIDADE.

Esta cuida da adequação de um fato cometido à conduta descrita na lei penal.

A MATERIALIDADE está comprovada com o lastro probatório coligido aos autos que revelam a ocorrência de atos libidinosos diversos da conjunção carnal praticada pelo réu contra a vítima quando a mesma tinha 11 anos de idade consistentes em beijar a vítima cada vez mais próximo da boca todas as vezes que lhes dava balinha; envio de vídeos de sexo explícito para o celular da vítima chamando-os de vídeos “engraçados”; passar as mãos na região genital da vítima; ficar espiando a vítima banhar nua. Tais fatos constam das declarações da vítima e foram corroborados por diversas testemunhas:

(…) que C J é tio, irmão da Avó; ele morava ao lado casa da avó (…) que a primeira vez, ele sempre dava balinha no quarto e, após, beijava cada vez mais próximo da boca da vítima (…) que o acusado mandava vídeos de sexo e dizia que eram vídeos engraçados, nessa época a vítima tinha 11 anos de idade (…) Carlos Jesus passava as mãos nas partes íntimas quando a vítima tinha 11 anos de idade(...)”( DECLARAÇÕES DA VÍTIMA EM JUÍZO)

(…) vítima disse que há algum tempo o acusado apalpava a vítima, ficava observando no banho (…) vítima recebia muitos agrados do réu como açaí, balinhas, doces, etc (...)”(testemunha  em juízo, prima da vítima e sobrinha do acusado)

(…) que lembra que ocorreu uma palestra sobre abuso sexual na escola em 2018 (…) que durante a palestra algumas alunas passaram mal, deitaram no chão, desmaiaram. Que Bianca desmaiou e não acordava. Que foi chamada a ambulância. Que Carlos chegou na escola e Bianca pediu para a depoente não deixar ele entrar. Ela disse que ele ‘mexia’ com ela, mostrava vídeo para ela, fazia ela assistir vídeo sem ela querer; Que disse que ele pegava no peito da vítima, mas não narrou relação sexual. Que contou para a mãe de Bianca em dezembro de 2018 e contou para o pai antes disso.”(depoimento em juízo de , diretora da Escola da Vítima entre 2018-2020)

(…) que conviveu como amiga mais próxima da vítima entre 2018-2020; que ela tinha crises e falava que ele ‘alisava’ ela nas partes íntimas (…) ela chorava quando tinha crises nas palestras de abuso sexual na escola (…) que a vítima conversa com a declarante e com Carol e que soube dos ‘alisamentos’ em 2018 (…) a vítima demonstrava tristeza e sofrimento ao falar dos abusos (…) a vítima falava sobre fotos e vídeos que o acusado mandava para vítima (…) (depoimento da testemunha , amiga da escola da vítima)

(…) Bianca falava de abuso sexual; falou que foi na casa da avó; Bianca falava que o acusado alisava o seu corpo; Bianca falou também em conjunção carnal com o réu; Bianca não falou quantas vezes teve estupro com conjunção carnal(…)” (depoimento em juízo da testemunha , psicóloga do município)

A AUTORIA, por sua vez, também restou indene de dúvidas, pelas declarações coerentes e uniforme da vítima que imputa tal delito ao acusado, versão essa que é corroborada pelas demais testemunhas acima citadas e ouvidas tanto em sede policial quanto em juízo, sendo irrelevante o consenso ou dissenso da mesma diante de sua tenra idade e imaturidade sexual. Observo que a vítima narra os abusos sexuais diversos da conjunção carnal que sofreu e as testemunhas ouvidas em Juízo apresentaram uma versão uniforme e que se complementam. Importante observar que a palavra da vítima sempre foi coerente e uniforme na imputação dos fatos delituosos desde a fase inquisitorial.

Assim, pelos depoimentos das testemunhas não resta dúvida acerca do cometimento do delito pelo qual o acusado foi denunciado, principalmente, porque a instrução processual revelou GRANDE HARMONIA entre as provas produzidas e as declarações da vítima. Ademais o depoimento da vítima assume maior relevância por estar em consonância com as demais provas dos autos. Segue jurisprudência a respeito do tema:

T J S C: “.....Em tema de crimes contra os costumes, que geralmente ocorrem às escondidas, as declarações da vítima constituem prova de grande importância, bastando por si só para alicerçar o decreto condenatório, mormente se tais declarações mostram-se plausíveis, coerentes e equilibradas, e com o apoio em indícios e circunstâncias recolhidas no processo “(JTAC 76 / 63)

TJRS: “Estupro. Importância da palavra da vítima como meio de prova. Em delitos dessa natureza, cometidos na clandestinidade, não havendo qualquer indício de que a imputação seja criação mental movida por interesses escusos, a palavra da ofendida, coerente com outros elementos colhidos nos autos, autoriza a condenação, máxima quando o réu invocou álibis contraditório e não provou nenhum” (RJTJERGS 181 / 147).

Nos crimes desta natureza prevista no Art. 213 do Código Penal, a prova resulta das declarações da vítima, prestadas de forma verossímil notadamente quando confirmadas pelos demais elementos existentes nos autos”. ( 3º CC do TJ – SP no cap. 18-015, Ver dos Tribunais 170 / 191).

 

TJSC-037710) CRIME CONTRA A LIBERDADE SEXUAL - ESTUPRO COM PRESUNÇÃO DE VIOLÊNCIA (ART. 213 C/C ART. 224, "A", DO CÓDIGO PENAL).

Acusado que, aproveitando-se da pequena vítima, à época com 11 anos, mas com idade mental entre 08 e 09 anos, para ganhar sua confiança, presenteia-lhe com cartões telefônicos e dinheiro, permitindo, assim, sua aproximação e consumação do coito, em três oportunidades. Declarações seguras e coerentes da ofendida, corroboradas por outros testemunhos. Prova suficiente para dar suporte ao decreto condenatório. Nos crimes contra os costumes, geralmente cometidos na clandestinidade, os depoimentos testemunhais das vítimas, quando claros, coerentes e harmônicos, com apoio nos autos, são bastante para embasar o decreto condenatório. Substituição da reprimenda corporal por restritiva de direitos. Impedimento legal à concessão da benesse haja vista o montante de pena aplicado. Dicção do artigo 44 do Estatuto Repressivo. Regime de cumprimento de pena integralmente fechado. Declaração incidental de inconstitucionalidade do § 1º do art. 2º da Lei nº 8.072/900 em decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal. Edição, ademais, da Lei nº 11.464/2007, alteradora da Lei 8.072/90, que expressamente conferiu a possibilidade de progressão de regime aos crimes hediondos ou equiparados. Aumento do período de cumprimento de pena para concessão da benesse, todavia, inaplicável aos fatos típicos ocorridos anteriormente à sua vigência. Extirpação da vedação operada no decisum. Recurso parcialmente provido. (Apelação Criminal nº 2005.012113-4, 1ª Câmara Criminal do TJSC, Rel. Túlio Pinheiro. unânime, DJ 05.06.2007).



Quanto ao ELEMENTO SUBJETIVO DO TIPO o mesmo restou evidenciado e constituiu-se na ação livre e deliberada do agente de praticar ato libidinoso diverso da conjunção carnal com a vítima menor de 14 anos de idade com o objetivo de satisfazer sua lascívia.

Quanto a TESE DEFENSIVA de ausência de provas suficientes para a condenação, a mesma está em franca oposição à análise e valoração do acervo probatório trazidos para os autos, não merecendo maiores considerações. Por todas as considerações acima, não se pode aplicar o princípio in dubio pro reo, já que pelo lastro probatório coligido aos autos não resta qualquer dúvida, seja quanto à autoria ou quanto à materialidade delitiva.

Quanto à causa de aumento do art. 226, II do CPB, observo que restou incontroverso nos autos que o réu não era tio da vítima, mas sim, irmão de sua avó materna e residia na casa ao lado, tendo a confiança da família e autoridade parental sobre a vítima e, aproveitando-se de tal vantagem, abusou de tais condições para praticar o delito, o que atrai a aplicação da majorante.

Quanto à pretensa aplicação do §1º do art. 217-A do CPB, a mesma é incabível e configura inegável bis in idem. Como se observa trata-se de norma que acresceu novo tipo para causas não abrangidas pelo caput, incluindo a vítima que mesmo sendo maior não tem discernimento para entender o ato praticado, em face de enfermidade ou doença mental, ou ainda, porque não pode oferecer resistência seja por causa permanente ou transitória (enfermidade, paralisia, embriaguez, desmaio, ingestão de entorpecentes, etc). Não é o caso dos autos.

ANTIJURIDICIDADE OU ILICITUDE.

Esta cuida da relação de contrariedade entre o fato típico e o ordenamento jurídico pátrio, sendo que na hipótese em análise não ocorreu qualquer causa de exclusão da ilicitude em favor do réu.

CULPABILIDADE.

Para a teoria finalista da ação citada, a culpabilidade é composta pela imputabilidade, exigibilidade de conduta diversa e potencial consciência da ilicitude do fato.

No caso em comento, o réu à época dos fatos já era maior de idade, portanto, imputável, por suas condições pessoais tinha plenas condições de saber da ilicitude do fato, bem como podia agir de conformidade com o ordenamento jurídico.



II.2. QUANTO À IMPUTAÇÃO DOS CRIMES DO ART. 213, §1º C/C ART. 226, II C/C ART. 69 DO CÓDIGO PENAL BRASILEIRO

Ao réu  foi imputada a prática do crime previsto no art. 213, §1º c/c art. 226, II c/c art. 69 do Código Penal Brasileiro, introduzido no ordenamento pela Lei nº 12015/09 de 07.08.2009, in verbis:

Estupro

Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso:(Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009)

Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos. (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009)

§ 1o Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 (dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos:(Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)

Pena - reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos.



Segundo a denúncia, tal teria ocorrido porque nos meses de junho e dezembro de 2020, o denunciado teria constrangido à conjunção carnal, mediante ameaça, B  S S, de apenas 14 (quatorze) anos de idade, da qual é tio-avô. A primeira vez teria ocorrido na casa da irmã dele e avó materna dela, onde ambos residiam. A conduta teria sido reiterada por ele no dia 11 de dezembro do mesmo ano, quando novamente usou de ameaça para constrangê-la a manter relações sexuais, desta vez na residência de uma irmã da vítima.

Legalmente e doutrinariamente, infere-se que pela teoria finalista da ação, crime é toda ação ou omissão típica, ilícita e culpável.

Nestas condições, e considerando os elementos de cognição existente nos autos, passo a apreciar a conduta imputada ao aludido réu.

TIPICIDADE.

Esta cuida da adequação de um fato cometido à conduta descrita na lei penal.

A MATERIALIDADE está comprovada com o lastro probatório coligido aos autos que revelam a ocorrência de dois atos libidinosos consistentes em conjunção carnal praticada pelo réu contra a vítima, mediante ameaça de contar para a avó da vítima que a mesma estava se relacionando com outra mulher e a segunda, após descobrir que a vítima estava tentando filmar os abusos, passou a apalpá-la e trancou a porta com cadeado e a constrangeu a conjunção carnal novamente. Tais fatos constam das declarações da vítima e foram corroborados por diversas testemunhas e pelo laudo de conjunção carnal que confirma a ocorrência de desvirginamento da vítima:



(…) que C J é tio, irmão da Avó; ele morava ao lado casa da avó (…) que a primeira vez, ele sempre dava balinha no quarto e, após, beijava cada vez mais próximo da boca da vítima (…) que o acusado mandava vídeos de sexo e dizia que eram vídeos engraçados, nessa época a vítima tinha 11 anos de idade (…) C J passava as mãos nas partes íntimas quando a vítima tinha 11 anos de idade(…) a primeira relação sexual ocorreu em junho de 2020; ‘que eu estava na casa da avó, que eu estava banhando, quando voltei pro quarto ele estava lá me esperando. Eu ia dormir com a avó pra não ficar sozinha, mas ela sabia que ele ficava no meu pé toda noite, só que ela não via maldade, achava que era só porque ele gostava de ficar perto de alguém; que ele disse que se eu não fizesse o que ele queria ele iria contar para a minha avó que estava namorando com uma menina. Eu fiz pra ele não contar’; que aconteceu no quarto que a vítima dormia; (…) que seis meses depois a vítima tentou fazer uma prova; ‘Eu fui para a casa da minha irmã, chamei ele para lá, pra assistir filme, aí coloquei o celular pra gravar, mas ele percebeu. Tentei esconder, mas não deu, aí ele colocou o cadeado no portão da casa da minha irmã. Aí ele começou a me ensinar como saber se tinha câncer de mama, aí pegou nos meus peitos e nas pernas fazendo massagem, dizendo que uma amiga dele gostava muito e que se eu não fizesse com ele de novo ia contar para minha avó e que não tinha como eu ir embora porque ele tinha colocado um cadeado no portão; (…) que contou para o psicólogo e foi orientada a reunir toda a família para contar; reuniu a família e contou dos abusos; que a avó pediu para não falar nada; que o acusado fugiu na mesma noite; que a declarante e sua mãe forma embora para goiânia; que retornaram no início de 2021; que quando o acusado retornou não fez mais nada, pois já tinha um mandado de prisão( DECLARAÇÕES DA VÍTIMA EM JUÍZO)

(…) que soube dos abusos sexuais em dezembro de 2020; que Bianca foi ao psicologo e ele aconselhou a falar; que ela fez uma reunião com a família e contou dos abusos; que o acusado jurou que não tinha feito; que o acusado foi embora da cidade logo em seguida; (…) que B relatou os abusos para a outra filha da depoente e para uma prima; que nas palavras da depoente o estupro aconteceu assim: ‘É, lá no quarto que a mãe “tava” dormindo, no dia anterior que ela tinha saído, ela disse que quando chegou da rua ele esperou ela tomar banho lá no quarto que ela dormia. Aí disse que ameaçava ela pra não gritar, aí foi quando ele fez o abuso com ela mesmo, carnal”; (…) que em 10.12.2020 Bianca falou para o psicologo o que estava acontecendo e ele aconselhou para ela falar tudo para família; que segundo a depoente: ‘aí ela comunicou, chamou eu, a mãe minha irmã e o pai dela e comunicou o que “tava” acontecendo e ele “tava” na casa dele como se não soubesse de nada. Quando a mãe chegou na casa dela que viu ele sentado foi conversar com ele e ele negou tudo. Aí ela disse que tinha mandado ela ir embora, não sei. De lá pra cá não tive mais notícias dele’. (…) que Bianca tentou gravar um vídeo do abuso para mostrar para família; que ela não falava sobre isso com a família; que ela foi assistir um vídeo com ele e depois ligou para a irmã, desesperada, dizendo que tinha sido abusada (...) (DEPOIMENTO EM JUÍZO DA TESTEMUNHA , mãe da vítima)



(…) QUE em dezembro de 2020 ela começou a contar tudo: que o acusado ficava observanda a vítima tomar banho, que sumiu calcinha da vítima, que ele tirava foto dela banhando; que ela contou que foi estuprada no quarto da avó pelo acusado sob a ameaça de contar para a avó que a mesma era homossexual; que incentivou B a falar para família; (…) que Bianca contou que uma vez tentou ter uma prova, mas não conseguiu e ele fez mais mal; (…) que a testemunha narrou; ‘Aí ela disse assim: “tu lembra daquele dia que nós fomos pra casa da tua madrinha e que eu chorei muito e que tu até chorou junto comigo? aquele dia eu “tava” sozinha em casa e eu “tava” com a porta encostada e ele abriu e ele ficou dentro do quarto comigo e me obrigou a fazer relação comigo’ (…) (…) ‘Ela falou assim “naquele dia ele me manteve lá dentro do quarto e me ameaçou dizendo que se eu não resistisse ele podia falar pra vó que eu gostava de uma mulher (...) ele me ameaçava muito e me segurava com força e eu não conseguia fazer nada”, que ela disse. Aí ela disse que ele também já tinha tentado outras vezes. Aí eu falei “Bianca, tu não pode deixar isso passar, tem que falar pra família’(...).(DEPOIMENTO EM JUÍZO DE , irmã da vítima)

(…) Em dezembro de 2020 a vítima mandou mensagem para a depoente dizendo que tinha sido abusada sexualmente pelo acusado com conjunção carnal e que falou tudo para família; que ela não falou quando e nem como aconteceram as relações sexuais (…) que o acusado chantageou a víitma de contar um caso específico para a avó relativo a uma festa na piscina (…) vítima disse que há algum tempo o acusado apalpava a vítima, ficava observando no banho (…) vítima recebia muitos agrados do réu como açaí, balinhas, doces, etc (...)”(testemunha  em juízo, prima da vítima e sobrinha do acusado)

(…) que participou da reunião e a vítima começou a chorar e que o acusado tinha tentado mexer com ela (testemunha em juízo )

(…) Bianca falava de abuso sexual; falou que foi na casa da avó; Bianca falava que o acusado alisava o seu corpo; Bianca falou também em conjunção carnal com o réu; Bianca não falou quantas vezes teve estupro com conjunção carnal(…)” (depoimento em juízo da testemunha , psicóloga do município)

A AUTORIA, por sua vez, também restou indene de dúvidas, pelas declarações coerentes e uniforme da vítima que imputa tal delito ao acusado, versão essa que é corroborada pelas demais testemunhas acima citadas e ouvidas tanto em sede policial quanto em juízo. Observo que a vítima narra duas conjunções carnais ocorridos em junho e dezembro de 2020 praticadas com o réu sob ameaças e as testemunhas ouvidas em Juízo apresentaram uma versão uniforme e que se complementam. Importante observar que a palavra da vítima sempre foi coerente e uniforme na imputação dos fatos delituosos desde a fase inquisitorial.

Assim, pelos depoimentos das testemunhas não restam dúvida acerca do cometimento do delito pelo qual o acusado foi denunciado, principalmente, porque a instrução processual revelou GRANDE HARMONIA entre as provas produzidas e as declarações da vítima. Ademais o depoimento da vítima assume maior relevância por estar em consonância com as demais provas dos autos. Segue jurisprudência a respeito do tema:

T J S C: “.....Em tema de crimes contra os costumes, que geralmente ocorrem às escondidas, as declarações da vítima constituem prova de grande importância, bastando por si só para alicerçar o decreto condenatório, mormente se tais declarações mostram-se plausíveis, coerentes e equilibradas, e com o apoio em indícios e circunstâncias recolhidas no processo “(JTAC 76 / 63)

TJRS: “Estupro. Importância da palavra da vítima como meio de prova. Em delitos dessa natureza, cometidos na clandestinidade, não havendo qualquer indício de que a imputação seja criação mental movida por interesses escusos, a palavra da ofendida, coerente com outros elementos colhidos nos autos, autoriza a condenação, máxima quando o réu invocou álibis contraditório e não provou nenhum” (RJTJERGS 181 / 147).

Nos crimes desta natureza prevista no Art. 213 do Código Penal, a prova resulta das declarações da vítima, prestadas de forma verossímil notadamente quando confirmadas pelos demais elementos existentes nos autos”. ( 3º CC do TJ – SP no cap. 18-015, Ver dos Tribunais 170 / 191).

 

TJSC-037710) CRIME CONTRA A LIBERDADE SEXUAL - ESTUPRO COM PRESUNÇÃO DE VIOLÊNCIA (ART. 213 C/C ART. 224, "A", DO CÓDIGO PENAL).

Acusado que, aproveitando-se da pequena vítima, à época com 11 anos, mas com idade mental entre 08 e 09 anos, para ganhar sua confiança, presenteia-lhe com cartões telefônicos e dinheiro, permitindo, assim, sua aproximação e consumação do coito, em três oportunidades. Declarações seguras e coerentes da ofendida, corroboradas por outros testemunhos. Prova suficiente para dar suporte ao decreto condenatório. Nos crimes contra os costumes, geralmente cometidos na clandestinidade, os depoimentos testemunhais das vítimas, quando claros, coerentes e harmônicos, com apoio nos autos, são bastante para embasar o decreto condenatório. Substituição da reprimenda corporal por restritiva de direitos. Impedimento legal à concessão da benesse haja vista o montante de pena aplicado. Dicção do artigo 44 do Estatuto Repressivo. Regime de cumprimento de pena integralmente fechado. Declaração incidental de inconstitucionalidade do § 1º do art. 2º da Lei nº 8.072/900 em decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal. Edição, ademais, da Lei nº 11.464/2007, alteradora da Lei 8.072/90, que expressamente conferiu a possibilidade de progressão de regime aos crimes hediondos ou equiparados. Aumento do período de cumprimento de pena para concessão da benesse, todavia, inaplicável aos fatos típicos ocorridos anteriormente à sua vigência. Extirpação da vedação operada no decisum. Recurso parcialmente provido. (Apelação Criminal nº 2005.012113-4, 1ª Câmara Criminal do TJSC, Rel. Túlio Pinheiro. unânime, DJ 05.06.2007).



Quanto ao ELEMENTO SUBJETIVO DO TIPO o mesmo restou evidenciado e constituiu-se na ação livre e deliberada do agente de praticar conjunção carnal com a vítima, mediante uso de força e grave ameaça, consistente em chantagem, com o objetivo de satisfazer sua lascívia.

Quanto a TESE DEFENSIVA de ausência de provas suficientes para a condenação, a mesma está em franca oposição à análise e valoração do acervo probatório trazidos para os autos, não merecendo maiores considerações. Por todas as considerações acima, não se pode aplicar o princípio in dubio pro reo, já que pelo lastro probatório coligido aos autos não resta qualquer dúvida, seja quanto à autoria ou quanto à materialidade delitiva.

Quanto à causa de aumento do art. 226, II do CPB, observo que restou incontroverso nos autos que o réu não era tio da vítima, mas sim, irmão de sua avó materna e residia na casa ao lado, tendo a confiança da família e autoridade parental sobre a vítima e, aproveitando-se de tal vantagem, abusou de tais condições para praticar o delito, o que atrai a aplicação da majorante.



ANTIJURIDICIDADE OU ILICITUDE.

Esta cuida da relação de contrariedade entre o fato típico e o ordenamento jurídico pátrio, sendo que na hipótese em análise não ocorreu qualquer causa de exclusão da ilicitude em favor do réu.

CULPABILIDADE.

Para a teoria finalista da ação citada, a culpabilidade é composta pela imputabilidade, exigibilidade de conduta diversa e potencial consciência da ilicitude do fato.

No caso em comento, o réu à época dos fatos já era maior de idade, portanto, imputável, por suas condições pessoais tinha plenas condições de saber da ilicitude do fato, bem como podia agir de conformidade com o ordenamento jurídico.



DO CONCURSO DE CRIMES

Quanto ao pleito de concurso material de crimes, previsto no art. 69 do CPB, observo que as todas as práticas delituosas envolvem o mesmo tipo penal de estupro do art. 213, caput, do CP ou art. 217-A do CPB praticados nas mesmas condições de lugar (residência de familiares), espaço temporal e maneira de execução de forma que resta evidenciada a continuidade delitiva do art. 71, caput do CPB, de forma que os subsequentes devem ser tidos como continuidade dos antecedentes, motivo pelo qual dou nova definição jurídica aos fatos nos termos do art. 383 do CPP.



III – DISPOSITIVO.



Por todo o exposto, julgo PARCIALMENTE PROCEDENTE a denúncia, para condenar o réu C J R M, nas sanções do art. 217-A, caput c/c art. 226, II do Código Penal Brasileiro e art. 213, §1º do CPB c/c art. 226, II do CPB, todos na forma do art. 71, caput, do CPB, conforme permissão do art. 383, caput, do CPP.

Passo à fixação das penas cabíveis na espécie.



FIXAÇÃO DA PENA-BASE – Art. 59 do CPB.

Em análise da culpabilidade, concluo que o grau de reprovabilidade é intenso já que praticou os delitos na residência da vítima e abusando da confiança em decorrência do parentesco. Sobre os antecedentes, não existe registro de outra condenação, portanto, o réu é portador de bons antecedentes. A conduta social é boa. A sua personalidade não revela tendência enfermiça, inexistindo dados que apontem negativamente em relação á referida circunstância. Os motivos do crime são comuns à espécie , eis que pensou na satisfação da própria libido. As circunstâncias do crime são desfavoráveis ao réu, uma vez que o crime ocorreu no interior da casa da avó e da irmã da vítima utilizando-se de sua autoridade doméstica na condição de tio-avô da vítima, porém, já utilizadas para valoração negativa da culpabilidade. As conseqüências do crime foram graves na medida em que há relatos de que a adolescente passou a se automutilar, cometer tentativas de suicídio, além de carregar consigo traumas da figura masculina. Sobre o comportamento da vítima, não contribuiu para o evento delituoso. Diante da análise supra, em sendo duas das condições judiciais desfavoráveis, fixo a pena-base em 08 (oito) ANOS DE RECLUSÃO.

ATENUANTES E AGRAVANTES.

Não existem circunstâncias atenuantes ou agravantes.

CAUSAS DE DIMINUIÇÃO OU DE AUMENTO DE PENA.

Vislumbro a causa de aumento do art. 226, II do CPB, motivo pelo qual elevo a pena base em metade, totalizando 12 (doze) anos de reclusão.

Vislumbro, ainda, a causa de aumento derivada do crime continuado do art. 71, caput, do CPB, motivo pelo qual elevo a pena em 1/6, totalizando 14 (quatorze) anos de reclusão.

Não existem causas de redução de pena, motivo pelo qual torno a pena definitiva em 14 (quatorze) ANOS DE RECLUSÃO.

Para regime de cumprimento de pena privativa de liberdade acima aplicada fixo o regime inicialmente fechado, nos termos do que determina a Lei 8.072/90.

Incabível, na espécie, o sursis ou a substituição por pena restritiva de direitos, nos termos do art. 44 do CPB, diante do quantum da pena aplicada.

A pena de reclusão deverá ser cumprida em Estabelecimento Penal adequado.

DA DETRAÇÃO PENAL: Em atenção ao disposto no art. 387, §2º do CPP (§ 2o O tempo de prisão provisória, de prisão administrativa ou de internação, no Brasil ou no estrangeiro, será computado para fins de determinação do regime inicial de pena privativa de liberdade. (incluído pela Lei nº 12.736, de 2012)), comuto a quantidade de tempo de cumprimento de prisão provisória (17.11.2021 a 27.04.2022), totalizando 05 meses e 10 dias, remanescendo 13 (treze) anos e 06 (seis) meses e 20 (vinte) dias de reclusão em regime inicialmente fechado.

Registre-se a impossibilidade de se fixar nesta sentença o valor mínimo para reparação do dano causado à ofendida, consoante prevê o inciso IV do art. 387 do CPP, com a redação da Lei 11.719/2008. É que o dispositivo exige que se utilize como parâmetro os prejuízos sofridos pela vítima e a instrução não revelou a liquidez da ocorrência de prejuízo. Noutra vertente, a presunção de que teria ocorrido dano, por si só, não se apresenta suficiente para fixação do valor da reparação.

De outra banda, MANTENHO A PRISÃO PREVENTIVA do acusado C J R M, por entendê-la necessária, uma vez demonstrada a prova da materialidade, provada a autoria, prevenindo a reiteração criminosa, como garantia da ordem pública e assegurando a aplicação da lei penal, uma vez que o réu fugiu logo após a publicização do delito, sendo factível que em liberdade volte a delinquir ou empreender nova fuga. Ademais trata-se de crime hediondo cuja natureza demanda maiores cautelas por parte do Estado, necessitando de resposta imediata do Estado. Observe-se, ainda, que se trata de delito doloso com pena mínima superior a 04 (quatro) anos de reclusão (CPP, art. 312 e 313, I), sendo insuficientes a aplicação de outras medidas cautelares diversas da prisão do art. 319 do CPP.

Recomende-se o réu na prisão em que se encontra.

Condeno o réu, ainda, em custas e despesas processuais, porém, dispenso o pagamento tendo em vista a hipossuficiência econômica do réu.

Transitada em julgado a sentença:

1) Seja lançado o nome dos réus no rol dos culpados nos termos do art. 393, II do CPP, bem como providenciar o registro no rol dos antecedentes criminais.

2) Oficie-se à Justiça Eleitoral em atenção ao art. 15, III da Constituição Federal;

3) Expeça-se guia de execução definitiva, encaminhando-a a vara de Execuções Penais de São Luís/MA, para acompanhamento.

P.R.I.



João Lisboa, 27 de abril de 2022.

(assinado digitalmente)

Juiz Glender Malheiros Guimarães

Titular da 1ª Vara da Comarca de João Lisboa