terça-feira, 23 de agosto de 2022

SENTENÇA RESPONSABILIDADE CIVIL. RACISMO. LEGITIMA DEFESA PUTATIVA. IMPROCEDÊNCIA.

 

proc. 0800074-82.2022.8.10.0038

SENTENÇA



1- RELATÓRIO.



FERNANDO MATIAS SILVA, através de advogado constituído, ajuizou a presente AÇÃO DE RESPONSABILIDADE CIVIL POR DANOS MORAIS E MATERIAIS, em face do FOTOGRAFE DANIELA KEMIE, CNPJ 03.915.573/0001-33, pelos fatos e fundamentos expendidos a seguir.

Segundo a inicial, no dia 10.12.2021, na sede da ré situada na Rua Coriolano Milhomem, 452, Centro, Imperatriz/MA, para onde o autor se dirigiu por volta das 16:30h com o objetivo de alugar sua beca para formatura. Lá chegando deparou-se com uma omissão de funcionários para abertura da porta da loja que estava trancada na chave seguida de início de fechamento de outro portão de acesso o que teria gerado embaraço e constrangimento ao autor que sentiu-se vítima de racismo. Saiu do local e comunicou o fato a sua amiga ARYELLE, mulher branca, que decidiu ir até o local, logo em seguida, e lá constatou que a loja funcionava normalmente. Aryelle teria indagado acerca do ocorrido e fora informada que minutos antes alguém havia entrado na loja e alegado perseguição por um bandido e, por isso, fecharam a porta. Afirma o autor que a justificativa não seria verdadeira. Afirma que tais fatos ofenderam sua dignidade e requer reparação por danos morais no valor de R$ 44.000,00.

Juntou imagem da sua colação de grau e cópia da notitia criminis encaminhada para Polícia Civil.

Posteriormente juntou à inicial um atestado médico de afastamento de suas atividades por 5 dias a partir de 13.12.2021, além de prints de conversas das tratativas para aluguel da beca, além de um áudio de mesmo conteúdo.

Determinou-se a citação do requerido.

O requerido apresentou resposta oportunidade em que sustentou em preliminar a inépcia da inicial; suspensão do feito até a conclusão do Inquérito policial; no mérito, afirma que a autora não se desincumbiu de sua prova mínima; que é inaplicável o CDC; que a filha de uma cliente adentrou a loja em pânico e pediu para que fossem trancadas as portas, pois havia um rapaz parado em frente com um volume na cintura por baixo da camisa; requer a título de reconvenção indenização por danos morais causados pela ampla divilgação em mídias sociais em prejuízo para imagem e contratos da ré; que a ré sofreu calúnia e difamação; que o atestado de transtorno de pânico não foi dado por médico especialista; finaliza requerendo o acolhimento das preliminares e a improcedência da ação e procedência da reconvenção.

O réu junta aos autos relatório do IP onde a autoridade policial conclui pela inexistência de indícios de crime contra honra do autor ou mesmo de crime de racismo.

A parte autora apresentou réplica, onde reafirma que o autor fora vítima de racismo, crime hediondo e rechaçado por tratados internacionais de direitos humanos; reafirma o direito à indenização por danos morais.

A parte autora noticia a ausência de juntada das imagens do circuito interno de TV.

A parte autora informa que não tem mais provas a produzir.

O réu requer a produção de prova oral.

Foi proferido despacho saneador, oportunidade em que foram afastadas as preliminares e fixados os pontos controvertidos.

Realizada audiência de instrução, oportunidade em que foram ouvidas uma testemunha do autor e três testemunhas do réu.

As partes apresentaram alegações finais em forma de memoriais. O autor afirmou que sofreu danos psicológicos que causaram a reprovação em uma disciplina e que teme ir a qualquer estabelecimento hoje de forma que sofre de síndrome do pânico; que o CDC é aplicável ao caso e que deve haver a inversão do ônus da prova; que a empresa deve responder pelo ilícitos causados por seus funcionários; que houve desaparecimento das imagens do circuito de segurança privada; finaliza requerendo a procedência da ação. O réu, por sua vez, alegou que o autor não se desincumbiu do seu ônus da prova; que a polícia opinou pelo arquivamento do feito por não vislumbrar a ocorrência de crime; finaliza requerendo a improcedência da ação e procedência da reconvenção.



Vieram os autos conclusos para sentença.



Eis o breve relato dos fatos. Passo a decidir.



2 - DA FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA.



MÉRITO

O direito civil consagrou um amplo dever legal de não lesar ao qual corresponde a obrigação de indenizar, aplicável sempre que, de um comportamento contrário àquele dever de indenizar, surtir algum prejuízo injusto para outrem.


Reza o art. 927 do Código Civil:


"Art. 927 - Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

Parágrafo único: Haverá obrigação de reparar o dano independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem".


Definem os arts. 186 e 187 do mesmo diploma legal:

"Art. 186 - Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.

Art. 187 - Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes" (grifo nosso).


Por conseguinte, ato ilícito é aquele praticado por terceiro que venha refletir danosamente sobre o patrimônio da vítima ou sobre o aspecto peculiar do homem como ser moral.


O dano moral é também consagrado como garantia constitucional, conforme prescreve o art. 5º, incisos V e X, da Constituição Federal:


"Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral, ou à imagem;

(...)

X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação" (grifo nosso).



RESPONSABILIDADE OBJETIVA OU TEORIA DO RISCO



A regra geral é a responsabilidade civil aquiliana ou subjetiva. Porém, nossa legislação, com finalidade protetiva, criou certas exceções, aplicando em determinados casos a responsabilidade objetiva. Sendo assim, induvidosa a responsabilidade civil objetiva nas relações de consumo, nos termos dos artigos 186 e 932, III, ambos do CC, combinado com os artigos 6º, II e 14 do Código de Defesa do Consumidor.



Eis a redação do dispositivo citado:



Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.”

(...)

Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.”



A responsabilidade civil objetiva, portanto, elimina de seu conceito o elemento culpa, ou seja, haverá responsabilidade pela reparação do dano quando presentes a conduta, o dano e o nexo de causalidade entre estes.



PRESSUPOSTOS DA RESPONSABILIDADE CIVIL



Para a configuração da responsabilidade civil da pessoa jurídica de direito privado prestadora de serviço público, necessário se faz a demonstração da presença dos elementos da responsabilidade civil, quais sejam: a conduta comissiva ou omissão, o evento danoso e nexo de causalidade. Deve ainda inexistir qualquer causa excludente da responsabilidade civil.



CONDUTA



A responsabilidade civil, tanto objetiva como subjetiva, deverá sempre conter como elemento essencial uma conduta.

Maria Helena Diniz assim a conceitua: "Ato humano, comissivo ou omissivo, ilícito ou lícito, voluntário e objetivamente imputável, do próprio agente ou de terceiro, ou o fato de animal ou coisa inanimada, que cause dano a outrem, gerando o dever de satisfazer os direitos do lesado".

Portanto, podemos dizer que conduta seria um comportamento humano, comissivo ou omissivo, voluntário e imputável. Por ser uma atitude humana, exclui os eventos da natureza; voluntário no sentido de ser controlável pela vontade do agente, quando de sua conduta, excluindo-se, aí, os atos inconscientes ou sob coação absoluta; imputável por poder ser-lhe atribuída a prática do ato, possuindo o agente discernimento e vontade e ser ele livre para determinar-se.

No presente caso, alega o autor que foi vítima de racismo ao ser impedido de adentrar para o interior do escritório do estabelecimento do réu fato que lhe causou danos psicológicos que devem ser reparados mediante indenização por danos morais.

Analisando as provas, observa-se que de fato o autor foi impedido de adentrar ao estabelecimento e que isso lhe causou constrangimento e até sentimento de humilhação, causando-lhe revolta, indignação que inclusive foi retratada em redes sociais, entrevistas jornalísticas e até mesmo com o rompimento das tratativas para prosseguir com a contratação do aluguel da beca de formatura. Esses fatos são incontroversos, pois não foram infirmados pelo réu. Ao contrário! O réu reconhece que suas prepostas de fato aturam no sentido de impedir a entrada do autor no estabelecimento.

Todas as testemunhas confirmam que isso aconteceu e até que houve fechamento de outras portas de segurança. Nesse ponto convém destacar que as imagens do sistema de circuito interno de TV somente iriam corroborar algo que restou incontroverso, motivo pelo qual as tenho como desnecessárias.



Assim, os autos revelam a dinâmica dos fatos narrados sob a óptica do autor com clareza, imputando ao réu, a princípio, ato ilícito.

EVENTO DANOSO



O dano representa uma circunstância elementar ou essencial da responsabilidade civil. Configura-se quando há lesão, sofrida pelo ofendido, em seu conjunto de valores protegidos pelo direito, relacionando-se a sua própria pessoa (moral ou física) aos seus bens e direitos. Porém, não é qualquer dano que é passível de ressarcimento, mas sim o dano injusto, contra ius, afastando-se daí o dano autorizado pelo direito.

O dano poderá ser patrimonial ou moral. Patrimonial é aquele que afeta o patrimônio da vítima, perdendo ou deteriorando total ou parcialmente os bens materiais economicamente avaliáveis. Abrange os danos emergentes (o que a vítima efetivamente perdeu) e os lucros cessantes (o que a vítima razoavelmente deixou de ganhar), conforme no art. 402 do novo Código. Já o dano moral corresponde à lesão de bens imateriais, denominados bens da personalidade (ex.: honra, imagem etc.).

O dano também restou provado, pois é inegável a situação perturbadora de vergonha e humilhação pelo tratamento discriminatório que o autor recebeu ao ser impedido de adentrar à loja. Destaco, entretanto, que inexiste nos autos qualquer elemento empírico que aponte que tal tratamento diferenciado tenha sido uma consequência da cor da pele do autor.



NEXO DE CAUSALIDADE



O nexo de causalidade consiste na relação de causa e efeito entre a conduta praticada pelo agente e o dano suportado pela vítima.

A princípio podemos fazer a correlação de que a violação da dignidade do autor derivou do atuo ilícito de impedir o autor do entrar na loja do réu.



DAS CAUSAS DE ROMPIMENTO DO NEXO CAUSALIDADE

Em que pese a presença dos elementos necessários para a caracterização da responsabilidade civil, é importante destacar que a instrução processual revelou inúmeras causas de rompimento do nexo causal, quais sejam: legítima defesa putativa, culpa exclusiva de terceiros e inexigibilidade de conduta diversa.



Com efeito, colhe-se a partir do depoimento da testemunha CAMILA LIMA FERREIRA que a mesma acompanhou sua mãe até a loja no dia dos fatos e posicionou-se do lado de fora passando a aguardar o retorno de sua genitora DENISE LIMA. Que em dado momento, após o autor estacionar sua motocicleta próximo de CAMILA a mesma assustou-se e correu para dentro da loja juntamente com a sua genitora que ainda estava do lado de fora e, bastante nervosa, pediu para travarem as portas pois havia um iminente risco de assalto, pois aquele homem apresentava um volume na cintura e isso fez lembrar alguns assaltos que sofreu no passado recente. Tal advertência de CAMILA foi o verdadeiro móvel do travamento das portas por prepostas da ré, com o fito de evitar um possível assalto.

De forma semelhante, DENISE LIMA narrou os fatos e revelou também medo de estar revivendo a dinâmica de fatos criminosos, momento de terror vivenciados no passado.

Essa versão é corroborada por diversos depoimentos de pessoas que presenciaram os fatos, dentro da loja, no momento do evento e que foram ouvidas em sede policial: FERNANDA FARIAS COSTA, LUANA MATOS DOS SANTOS LEITE, RENATA KELLY LOPES DA SILVA E ROANNA DOURADO SANTOS DA SILVA.

Em comum a todos os depoimentos a narrativa de que CAMILA E DENISE estavam nervosas e apavoradas informando que aquele homem possivelmente pretendia assaltar a todos na loja, o que motivou a manutenção da porta de vidro travada na chave e o fechamento de outras portas de segurança dentro do estabelecimento.



Dispõe o art. 188 do CC:

Art. 188. Não constituem atos ilícitos:

I - os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido;

II - a deterioração ou destruição da coisa alheia, ou a lesão a pessoa, a fim de remover perigo iminente.

Parágrafo único. No caso do inciso II, o ato será legítimo somente quando as circunstâncias o tornarem absolutamente necessário, não excedendo os limites do indispensável para a remoção do perigo.”



Por outro lado, o CDC de igual forma admite excludentes de responsabilidade civil da seguinte forma:



Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.

(…)

§ 3° O fornecedor de serviços só não será responsabilizado quando provar:

I - que, tendo prestado o serviço, o defeito inexiste;

II - a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.”



A legítima defesa putativa é assim definida na doutrina:

Legítima defesa putativa é a também denominada legítima defesa ficta. A situação de perigo existe tão somente no imaginário daquele que supõe repelir legitimamente um injusto. Constitui descriminante putativa ou seja, o agente "supõe a ocorrência de uma excludente de criminalidade que, se existisse, tornaria sua ação legítima". Por conseguinte, a ação do que se supõe agredido é revestida de antijuridicidade, em divergência daquele que age em legítima defesa real. Afirma Jescheck que "o fato praticado sob a suposição errônea de uma causa de justificação continua, pois, sendo um fato doloso". (BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal, volume 1: parte geral. 14 ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 313.)



A culta exclusiva de terceiros ocorre quando o ato ilícito praticado pelo agente ou seus prepostos deriva exclusivamente da conduta levada a efeito por um terceiro.



Tanto a legitima defesa quanto a culpa exclusiva de terceiros estão presentes no caso em análise e são causa que operam o rompimento do nexo causal entre a ação do réu e o dano experimentado pelo autor.



A isso, poderíamos somar ainda a excludente de culpabilidade da inexigibilidade de conduta diversa, pois diante da situação fática narrada por CAMILA E DENISE para todos no interior da loja, não seria razoável que se esperasse das prepostas a abertura das portas.





DANOS MORAIS

Análise fica prejudicada diante da incidência de causas de rompimento do nexo causal.



DA RECONVENÇÃO



Em sua resposta, requer o réu indenização por danos morais em face de lesão à sua imagem e boa fama.

Da mesma forma que a narrativa do autor desconheceu a dinâmica dos fatos no interior da loja, a ação do autor seria legítima se os fatos tivessem ocorrido da forma como ele acreditou ter ocorrido. Aqui também é aplicável a inexigibilidade da conduta diversa como causa de rompimento do nexo causal, o que conduz à improcedência da reconvenção.



3- DO DISPOSITIVO.



Em face do exposto, JULGO IMPROCEDENTE a ação e a reconvenção em face da caracterização de causas de rompimento do nexo causal.

Condeno o autor e réu em custas e despesas processuais e honorários advocatícios no percentual de 15% (quinze por cento) do valor da causa. Suspendo a exigibilidade do pagamento nos termos do art. 98, §3º do CPC.

P. R. I.


João Lisboa/MA, 23 de agosto de 2022.


Juiz Glender Malheiros Guimarães

Titular da 1ª Vara da Comarca de João Lisboa