quinta-feira, 2 de setembro de 2021

SENTENÇA. QUERELA NULLITATIS INSANABILIS. INEXISTÊNCIA DE VÍCIOS TRANSRESCISÓRIOS. IMPROCEDENTE

 

PROCESSO N˚: 0801029-84.2020.8.10.0038

 

 

SENTENÇA

 

RELATÓRIO

DEOCLECIANO AIRES CARVALHO, médico já qualificado,  ingressou com a presente ação declaratória de NULIDADE DA SENTENÇA (QUERELA NULITATIS INSANABILIS) visando atingir a sentença transitada soberanamente em julgado proferida nos autos da AÇÃO CIVIL PÚBLICA DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA Nº 173/2002 proposta pelo MP em face de FRANCISCO ALVES HOLANDA, DEOCLECINO AIRES CARVALHO, HELIO ALVES BEZERRA e PEDRO ROMERO DE LIRA DANDA nas quais todos foram condenados recebendo as sanções da LEI nº 8429/92.

Segundo a inicial, após o trânsito em julgado da sentença condenatória o corréu FRANCISCO ALVES HOLANDA ingressou com ação rescisória junto ao TJMA tendo obtido êxito e como consequência, desconstituiu a COISA JULGADA.

O AUTOR entende que a ação rescisória que rescindiu a sentença e julgou improcedente a Ação de Improbidade em relação a FRANCISCO HOLANDA deve ter seus efeitos estendidos para todos os litisconsortes, incluindo o autor, por aplicação analógica das regras de extensão do art. 1005, 1008 e art. 274 do CPC.

Afirma que FRANCISCO HOLANDA era o prefeito e o autor o SECRETÁRIO DE SAÚDE DO MUNICÍPIO de João Lisboa/MA e que ambos foram condenados por uma simulação de venda de um hospital pertencente ao primeiro aos réus PEDRO e HELIO, amigos do vendedor, no período entre sua eleição e a posse na chefia do município para em seguida o mesmo hospital ser locado ao município sem licitação, pelo dobro do preço que pagava no prédio anterior. E que o procedimento de dispensa contou com a participação decisiva do autor que atestou a inexistência de outro prédio em condições de receber o hospital, apesar de o hospital Dom Bosco ter sediado o hospital municipal até o mês anterior.

Prossegue afirmando que o autor fora condenado nas mesmas penas que FRANCISCO HOLANDA, a apelação foi deserta e houve rescisória somente de FRANCISCO HOLANDA que obteve êxito nos seguintes termos “(...) Em DECIDIR PELA PROCEDÊNCIA DA AÇÃO RESCISÓRIA, PARA RESCINDIR A PARTE DA SENTENÇA IMPUGNADA E, EM CONSEQUÊNCIA, JULGAR IMPROCEDENTE A AÇÃO DE IMPROBIDADE EM RELAÇÃO AO AUTOR DA RESCISÓRIA”, na sessão de 10.04.2014.

Requereu ao fim a extensão dos efeitos do Acordão rescindendo ao autor uma vez que os fundamentos do mesmo – violar literal disposição de lei por ausência de individualização das condutas e das penas – são aplicáveis ao autor.

A ação foi distribuída para a 2ª Vara, havendo declínio para este juízo.

Este juízo proferiu sentença de indeferimento da inicial por impossibilidade jurídica do pedido já que este juízo ”não tem competência para alterar o inteiro teor do ACORDÃO RESCIDENDO proferido pelo TJMA, onde nas razões de decidir e no dispositivo deixou evidente que se tratava de ação rescisória que impugnava especificamente a situação de um só dos réus e que não alcançaria a situação processual dos demais”.

Contra a sentença adveio apelação a qual fora provida pelo TJMA para anular a sentença e determinar o processamento da presente ação de nulidade.

Os autos retornaram ao 1º grau de jurisidição.

Foi determinada a citação do Ministério Público o qual apresentou contestação onde alegou em preliminar a impugnação da gratuidade da justiça; no mérito, afirma que é incabível a ação de nulidade proposta, uma vez que inexiste tal vício pretendendo o autor rediscutir o mérito da causa, o que não é admissível nessa fase processual; que a mera alegação de coisa julgada inconstitucional não autoriza a ação declaratória de inexistência, pois a querela nulitatis insanabilis somente é admissível nos casos de ausência de pressupostos processuais de existência ou de constituição do processo, tais como demanda, jurisdição e citação. Que o próprio Acórdão da rescisória deixou claro que os efeitos da ação rescisória não abarcariam outros corréus e rescindiu apenas o capitulo da sentença que condenou o corréu FRANCISCO ALVES DE HOLANDA; que o autor sequer alegou o vício transrescisório que fosse capaz de qualificar a sentença como inexistente. Finaliza requerendo o indeferimento da gratuidade e no mérito a improcedência da ação.

As custas foram reconhecidas como recolhidas na decisão de id. 48014781.

O autor apresentou réplica de id. 49950987, oportunidade em que reafirmou que o vício da fundamentação genérica da sentença para aplicação das sanções reconhecido no Acórdão da ação rescisória é o mesmo que atingiu o autor motivo pelo qual, mais uma vez, requereu a extensão dos efeitos daquela decisão para si.

As partes foram intimadas para especificarem eventuais provas em 10 dias. O MP insistiu na incorreção do recolhimento das custas e pleiteou o julgamento antecipado da lide. O autor inovou afirmando, agora, que se trata de uma ação incidental e, acaso sejam geradas novas custas, que sejam pagas ao final e requereu o julgamento antecipado da lide.

Vieram os autos conclusos.

É o relatório. Decido.

Quanto à preliminar de não recolhimento das custas, já houve decisão. Está superada a preliminar.

II - FUNDAMENTAÇÃO

Pretende o autor através da presente ação atingir a sentença transitada soberanamente em julgado proferida nos autos da AÇÃO CIVIL PÚBLICA DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA Nº 173/2002 proposta pelo MP em face de FRANCISCO ALVES HOLANDA, DEOCLECINO AIRES CARVALHO, HELIO ALVES BEZERRA e PEDRO ROMERO DE LIRA DANDA nas quais todos foram condenados recebendo as sanções da LEI nº 8429/92.

Para tanto, uma vez escoado há anos o prazo da ação rescisória, lançou mão o autor da presente ação visando a declaração de nulidade da sentença proferida por este juízo, afirmando que lhe devem ser estendidos os efeitos do ACORDÃO DA Ação Rescisória - Processo nº 0002075-08.2013.8.10.0000, movida pelo CORRÉU Francisco Alves de Holanda, em face da sentença originária, processo nº 0000173-86.2002.8.10.0038.

Relacionando-se diretamente com os chamados vícios transrescisórios, a querela nullitatis insanabilis desempenha importantíssimo papel no exercício da jurisdição e na garantia da segurança jurídica, podendo ser manejada a qualquer tempo. Afigura-se, portanto, como ação declaratória cujo objeto é a declaração de inexistência de suposta relação processual. De modo diverso da ação rescisória, que rescinde o que é inválido ou defeituoso (desconstituindo a coisa julgada ora formada), a querela nullitatis declara a inexistência daquilo que nunca chegou a ser.

Assim, a ação rescisória e os recursos não são os únicos meios de invalidar uma decisão judicial já que  a querela nullitatis, também o faz e  tem por fundamento a ausência de pressupostos processuais de existência.

A doutrina costuma arrolar como pressupostos processuais, cuja falta implica inexistência de relação processual, a capacidade de ser parte, o direcionamento da ação a um órgão jurisdicional e a existência de uma demanda. Sem tais pressupostos, o que os autos registram é apenas um arremedo de processo, mais precisamente um não processo, cuja inexistência pode ser declarada a qualquer tempo, porque a tutela jurisdicional que a tanto visa não está sujeita a prescrição ou decadência.

O que rende ensejo à querela nullitatis é a ausência daquilo que deveria ter vindo antes, que deveria ter antecedido o próprio processo, aquilo que deveria ser suposto para a existência da relação processual, ou seja, os chamados VÍCIOS TRANSRESCISÓRIOS, isto é, aqueles vícios que podem ser arguidos mesmo depois, e muito além, de passado o prazo decadencial para a ação rescisória.

No que concerne à ausência de pressupostos processuais e, por conseguinte, a inexistência de relação processual, Alexandre Freitas Câmara com muita propriedade leciona:

“Pressupostos de existência são os elementos necessários para que a relação processual possa se instaurar. A ausência de qualquer deles deve levar à conclusão de que não há processo instaurado na hipótese. Assim, e sem nos preocuparmos (por enquanto) com a enumeração dos pressupostos processuais, pode-se dizer que é inexistente o processo se o mesmo se desenvolve fora de um órgão estatal apto ao exercício da jurisdição (juízo). Com isso, verifica-se que não é processo o que se desenvolve perante o professor da Faculdade de Direito, com fins meramente acadêmicos, objetivando mostrar aos estudantes como se desenvolve um processo real”.

A sentença prolatada num processo que tramitou perante um juízo absolutamente incompetente – o processo existe, embora falte um requisito de validade – pode ser rescindida no prazo de dois anos a contar do trânsito em julgado da decisão.

Em contrapartida, pode ser declarado INEXISTENTE o processo que se desenvolveu e chegou ao seu fim, entre outros vícios invalidantes, sem a participação de todos os litisconsortes necessários unitários.

A querela nullitatis é uma ação de nulidade, que tem por escopo a declaração de que o processo não existe, reconhecendo-se a ausência de um pressuposto de existência do processo relativo a demanda, jurisdição ou citação.

A ausência do pressuposto da existência da demanda, por falta de citação, naqueles casos em que o litisconsórcio é necessário e unitário. Inválido para um dos litisconsortes, de regra aquele que deveria ter sido citado, inválido para todos. Ninguém pode ter seus direitos tangidos sem o devido processo legal.

A análise da ausência de capacidade de ser parte poderia servir de supedâneo à ação de querela nullitatis, como no caso de uma ação proposta contra ão Pedro para reclamar a ausência de chuvas na lavoura.

O pressuposto da exigência de um órgão jurisdicional investido de jurisdição também poderia dar ensejo à ação de nulidade.

ALGUMAS DIFERENÇAS ENTRE A QUERELA NULLITATIS E A AÇÃO RESCISÓRIA.

A rescisória tem por fundamento vícios que não contaminam o plano de existência, mas sim o plano de validade do processo; a querela nullitatis, por seu turno, visa a declaração de nulidade da relação processual, ao passo que a rescisória tem por objetivo a desconstituição de uma situação jurídica a princípio válida, com aptidão para formar a coisa julgada material acerca da relação substancial e, passados os dois anos do trânsito em julgado, a coisa soberanamente julgada, sem possibilidade de qualquer desconstituição futura, em respeito ao princípio da segurança jurídica.

Nesse contexto, a ação com base na querela nullitatis veicula pretensão de natureza negativa, por meio da qual almeja a parte a declaração de inexistência de relação jurídica processual, naquelas hipóteses extremas de ausência de pressupostos processuais relacionados à própria existência do processo (nulidades insanáveis).

Cumpre ainda esclarecer que o objeto da querela nullitatis é a declaração de que o processo não tem existência no mundo jurídico. Na esteira de Marcos Bernardes de Mello afirma-se que o fato jurídico (o arremedo de processo) não foi suficiente para a incidência da norma juridicizante, de modo a caracterizar o devido processo legal.

Feita esta recapitulação, voltamos ao caso em análise onde invoca o autor em sua inicial o seu direito de extensão dos efeitos da ação rescisória do corréu ao autor com fundamento nos art. 1005, 1008 do CPC e 274 do CC, afirmando que se trata de litisconsórcio passivo necessário:

“Art. 1.005. O recurso interposto por um dos litisconsortes a todos aproveita, salvo se distintos ou opostos os seus interesses.”

“Art. 1.008. O julgamento proferido pelo tribunal substituirá a decisão impugnada no que tiver sido objeto de recurso.”

“Art. 274. O julgamento contrário a um dos credores solidários não atinge os demais, mas o julgamento favorável aproveita-lhes, sem prejuízo de exceção pessoal que o devedor tenha direito de invocar em relação a qualquer deles.”

                        Quanto ao dispositivo do art. 274 do CC, relaciona-se com o direito das obrigações e não possui qualquer pertinência ao caso em análise, posto que não se discute responsabilidade solidária entre credores no presente feito.

                        A regra do art. 1005 do CPC, trata do efeito expansivo dos recursos, mas tem aplicação restrita aos casos de litisconsórcio unitário, o que por evidente, não é o caso dos autos conforme se demonstrará a seguir.

O LITISCONSÓRCIO PASSIVO NECESSÁRIO UNITÁRIO

Oportuno, pois, revisitar o respectivo conceito de litisconsórcio passivo necessário e unitário.

Tecnicamente, dá-se o nome de litisconsórcio quando duas ou mais pessoas litigam, no mesmo processo, em conjunto, ativa ou passivamente (art. 113). É hipótese, portanto, de cúmulo subjetivo (de partes) no processo.

Os arts. 114 a 116 do CPC/2015 estabelecem que:

Art. 114. O litisconsórcio será necessário por disposição de lei ou quando, pela natureza da relação jurídica controvertida, a eficácia da sentença depender da citação de todos que devam ser litisconsortes.

Art. 115. A sentença de mérito, quando proferida sem a integração do contraditório, será:

I – nula, se a decisão deveria ser uniforme em relação a todos que deveriam ter integrado o processo;

II – ineficaz, nos outros casos, apenas para os que não foram citados.

Parágrafo único. Nos casos de litisconsórcio passivo necessário, o juiz determinará ao autor que requeira a citação de todos que devam ser litisconsortes, dentro do prazo que assinar, sob pena de extinção do processo.

Art. 116. O litisconsórcio será unitário quando, pela natureza da relação jurídica, o juiz tiver de decidir o mérito de modo uniforme para todos os litisconsortes.

Em resumo, o litisconsórcio necessário consiste na cumulação de sujeitos da relação processual (no pólo ativo, no pólo passivo ou em ambos) (I) por expressa determinação legal em casos específicos ou, (II) genericamente, para as hipóteses em que haja uma incindibilidade da situação jurídica envolvendo vários sujeitos, em que seja impossível requerer uma providência jurisdicional contra um deles sem atingir os demais.

O segundo caso envolve o pólo passivo da demanda (unitariedade da situação jurídico-material hábil a gerar a necessidade do litisconsórcio passivo), configurando-se uma hipótese em que se pretende que a sentença produza efeitos sobre uma situação que envolve de forma inseparável mais de um sujeito (litisconsórcio unitário – CPC/2015, art. 116).

O certo é que, diante de uma situação indissociável, todos aqueles diretamente envolvidos devem ser citados para integrarem a lide (litisconsórcio passivo necessário unitário), sob pena de a decisão de mérito não produzir efeitos sobre o réu faltante e, como a situação é incindível, não produzir efeitos sobre ninguém.

Claro é o ensinamento de Luiz Rodrigues Wambier e Eduardo Talamini:

“Se há uma situação material unitária, i.e., uma situação que envolve de modo indissociável uma pluralidade de sujeitos, e se pretende que a decisão de mérito do processo produza seus efeitos sobre tal situação (desconstituindo-a, transformando-a, declarando-lhe a existência, inexistência ou modo de ser), toda aquela pluralidade de sujeitos deve, em princípio, figurar no polo passivo da ação […]. Se algum desses sujeitos não for citado para ser réu na ação, a sentença não produzirá efeitos sobre ele […] – e se não produzir efeitos sobre ele, como a situação controvertida é incindível, não produzirá efeitos sobre ninguém, nem mesmo sobre aqueles que foram citados como réus. Portanto, todos precisam ser incluídos no litisconsórcio passivo e devidamente citados. É isso que a parte final do art. 114 quer dizer com ‘a eficácia da sentença depender da citação de todos que devam ser litisconsortes’. Por isso, pode-se dizer que litisconsórcio passivo unitário será também, em princípio, necessário”.

No presente caso fica claro que estamos diante de um LITISCONSÓRCIO SIMPLES e não unitário, uma vez que poderia haver decisões distintas para todos os participantes. Poderia a ação ser julgada procedente para um e improcedente para outro, pois a relação de direito material que envolve as partes não era incindível. Poderia, inclusive a ação ser proposta contra um só dos corréus, separadamente.

Assim, não procede a tentativa de invocação da regra do art. 1005 do CPC para, por analogia, ser o autor beneficiário de um efeito expansivo da Ação Rescisória.

Também é impertinente a invocação da regra do art. 1008 do CPC que trata do efeito substitutivo das decisões dos tribunais nos recursos em relação às decisões impugnadas, pois não se trata de recurso e  não há litisconsórcio unitário.

 Em suma: não alegou o autor em sua inicial quaisquer VÍCIOS TRANSRESCISÓRIO que autorizassem o reconhecimento da inexistência da sentença impugnada.

Ao contrário, pretende o autor invocar a presente ação como supedâneo de uma ação rescisória da qual já operou-se a preclusão temporal, restando a sentença soberanamente transitada em julgado.

Em nome da segurança jurídica, não é possível a invocação do princípio da expansividade dos recursos no presente caso, pois não se trata de litisconsórcio unitário.

Por conseguinte, admitir-se a presente ação para alcançar objetivo que, em tese, seria possível via ação rescisória por violação literal e manifesta de norma jurídica (CPC, 966, V) seria admitir-se uma AÇÃO RESCISÓRIA para a eternidade. Repito: a finalidade da querela nullitatis não é questionar a validade da decisão, mas sim, algo muito mais grave que ocorre no plano da EXISTÊNCIA do ato jurídico.

PORTANTO, DEVE HAVER RESPEITO À COISA JUGADA! SUA RELATIVIZAÇÃO É UMA EXCEÇÃO SOMENTE ADMISSÍVEL EM CASOS EXTREMOS, NÃO SENDO O CASO DOS AUTOS.

 

 DISPOSITIVO

ANTE O EXPOSTO e o que mais dos autos consta, JULGO IMPROCEDENTE A PRESENTE AÇÃO por não reconhecer nenhum VÍCIO TRANSRESCISÓRIO que autorize a declaração de inexistência/nulidade da sentença impugnada e, por consequência, extingo o processo, com resolução do mérito, nos termos do art. 487, I, CPC.

Condeno o autor em custas e despesas processuais e honorários advocatícios no percentual de 10% sobre o valor da causa.

P. R. I.

João Lisboa/MA, 02 de setembro de 2021.

 

Juiz Glender Malheiros Guimarães

Titular da 1ª Vara da Comarca de João Lisboa